domingo, 19 de abril de 2009

Entrevista com Luigi Ferrajoli - Parte 1

A Teoria do Garantismo e seus Reflexos no Direito e no Processo Penal
Entrevista com Luigi Ferrajoli, concedida a Fauzi Hassan Choukr

Fauzi Hassan Choukr — Na sua obra "Direito e Razão" existe um tríplice conceito de garantismo, sendo que todos eles trabalham com uma definição de soberania no sentido clássico. Pergunto-lhe: como pode operar o garantismo num mundo globalizado social e politicamente?

Luigi Ferrajoli — Garantismo é antes de tudo um modelo de Direito. Neste sentido, significa submissão à lei constitucional, à qual todos deverão ser sujeitados, sendo incorreto vinculá-lo a qualquer soberania interna de poderes institucionalizados, pois esta noção de soberania foi dissolvida pelo constitucionalismo. Como decorrência, todos os poderes estão submetidos à vontade da lei que transformará os direitos fundamentais em direito constitucional interno. Dito isto, o grande problema que o garantismo enfrenta é também o de submeter à lei os poderes privados, além dos poderes estatais.
Parece-me que o garantismo tem possibilidades de desenvolvimento que dependem de variados processos, como o constitucional e o cultural, e que fogem à tradição liberal clássica.
Antes de tudo é necessário recordar que o garantismo nasce no âmbito dos direitos individuais, na tradição iluminista, como forma de limite ao poder soberano estatal (liberdade pessoal, de consciência, etc.), sendo necessário precisar, ainda, que teve muita influência nesse processo a estipulação dos direitos positivos sociais, agregados aos direitos negativos de liberdade.
A segunda direção do garantismo é aquela ligada aos direitos privados. O garantismo, que sempre foi elaborado no confronto dos poderes públicos, deve ser também transposto para o confronto dos poderes privados, apenas que não há uma dimensão constitucional para isso, donde há uma idéia de onipotência do mercado.

FC — Este sentido de liberalismo então não é compatível com a idéia de garantismo?

LF — Seguramente há dois significados para as idéias de liberalismo e democracia.
De um lado, democracia como exteriorização da vontade da maioria. Esta maioria poderia, nessa concepção, fazer aquilo que quisesse. Naturalmente esta é uma idéia paradoxal, autoritária, lesiva dos direitos das minorias. Esta concepção clássica de democracia é válida, mas é apenas uma das dimensões. É a dimensão política, a dimensão de quem decide, mas é necessário ter em conta em relação a que esta decisão é tomada, daquilo que é deixado à discricionariedade para ser decidido.
Mas eu defendo que a matéria decidível está circunscrita àquilo que não deve ser objeto de nenhuma decisão de poder soberano. A maioria deve estar restrita a decidir sobre as regras formais, a forma da decisão. Mas deve ficar claro que esta dimensão procedimental é insuficiente para o conceito de democracia. O constitucionalismo vinculou também o legislador, não apenas na forma de produção normativa, mas também no seu conteúdo.
Assim, o chamado Estado Democrático de Direito, como um sistema de limites e vínculos, corresponde a uma dimensão substancial , àquilo que não deve ser objeto de decisão pela maioria. Como decorrência, a liberal democracia, nos moldes propagados, acaba se transformando numa forma de neoabsolutismo.

FC — Dentro de todo este quadro qual pode ser o papel do Poder Judiciário?

LF — O papel do Poder Judiciário é imenso, como um mecanismo impeditivo da invasão de um poder em outro, assumindo assim o principal papel, vez que constitucionalismo e garantismo significam submissão à lei. Nesse sentido, ambos geram um fenômeno relativamente novo, qual seja, o da limitação de poderes e da legalidade na atuação desse poder.
É, digamos, a outra face do Estado de Direito, que vincula também o legislador, e assim faz crescer os vínculos e os limites legais.
Neste ponto, todas as esferas de poder, público, privado, estatal, internacional, exigem um controle de jurisdicionalidade, com o objetivo de recompor as violações, seja através do controle de constitucionalidade ou, por exemplo, num recente fenômeno da história européia, da punição à criminalidade de poder, como a corrupção, a concussão, etc., que são, de um lado, atreladas ao aumento das funções estatais, mas de outro são também elementos estruturais extremamente ligados à regulação capilar do exercício dos poderes públicos ao menos no modelo do Estado de Direito.
Verdadeiramente, hoje, tende-se a livrar-se da jurisdição através de uma ideologia neo-absolutística, que nega os vínculos legais através das desregulamentações, etc.
Assim o papel da jurisdição é, antes de tudo, destinado ao controle sobre a ilegalidade no exercício do poder. Não porque hoje há um poder mais corrupto do que no passado, mas porque, de um lado, aumentou a complexidade de organização do Estado e, de outro, também houve um aumento da estrutura garantística do Direito.
E cada aumento de garantia, isto é, de limites e vínculos, comporta um aumento no papel da jurisdição. Naturalmente a legitimação do papel do Poder Judiciário se dá pela legitimação da norma ou seja, a legitimação pelo Direito Penal, processo penal, processo civil, que fazem com que esse poder seja naturalmente um poder de recomposição e não de decisão.

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